Viver na montanha era um sonho para a reforma de Isabel Costa e do marido, João Tomás. Mas ainda não aconteceu. Ao testemunharem a quase extinção de um dos maiores patrimónios de Portugal, transformaram o sonho em missão. Levantaram fábricas e ressuscitaram uma arte quase esquecida. O desafio resultou na fixação de novas gerações em Manteigas, uma aldeia na serra da Estrela, e na transformação do modesto tecido de burel num produto de luxo.
Qual é a história por trás do desafio da recuperação do tecido burel?
Esta é uma história com quase vinte anos e não começou com o burel, mas sim com a recuperação de dois espaços e a sua transformação em hotéis de charme, a Casa de São Lourenço e a Casa das Penhas Douradas. A Burel Factory nasceu pelo nosso compromisso em preservar os produtos endógenos e centenários da Serra da Estrela. Ao encontrarmos a fábrica de Lanifícios Império, em processo de insolvência, não tivemos coragem de deixar este grandioso legado desaparecer. Recuperámos máquinas do século XIX e, com a sabedoria dos mais velhos e a energia dos mais jovens, ressuscitámos o burel, que estava em vias de extinção. A nossa ideia inicial, minha e do João Tomás, era prepararmos a reforma e viver na montanha, mas ainda não aconteceu.
Concretamente, o que é o burel?
É um tecido tradicional, grosso e robusto, composto apenas por lã de ovelhas autóctones. É um dos tesouros de Portugal, igualmente enraizado na história dos franciscanos e dominicanos. Este tecido pobre e desvalorizado é, na verdade, uma preciosidade. A sua simplicidade esconde uma série de aplicações, sendo versátil para acústica, roupa, acessórios e muito mais. Transformamos o humilde em luxo e é isso que torna o burel especial.
Como conseguem manter a tradição e adaptar-se, simultaneamente, ao mercado contemporâneo?
O burel foi reinventado, combinando a arte dos artesãos de Manteigas com padrões e aplicações contemporâneas. Esta fusão resulta em peças únicas que transportam tradição e inovação. O destaque está em adicionar valor aos produtos artesanais, impossíveis de serem produzidos em massa. Os jovens designers trazem funcionalidade e inovação, mantendo a história presente em coleções e padrões. A exploração contínua de possibilidades resulta em produtos com bastante impacto.
Também deram uma nova vida ao pastoreio…
A relação que cultivamos com os pastores e o processo de tosquia são essenciais na nossa missão. Coordenamos cuidadosamente a tosquia, que é apenas uma pequena fração do que consumimos, mas é feita com apreço e respeito. Utilizamos exclusivamente lãs nacionais de diversas regiões do país, adaptando a nossa escolha aos diferentes tipos de tecidos que produzimos.
Como é feita a tosquia?
A tosquia é um ritual que se desenrola de acordo com a ordem de idade das ovelhas, é uma celebração da tradição. Nas ovelhas de estimação dos pastores, deixamos a ponta da cauda sem tosquiar, como um gesto de carinho e distinção. À medida que a lã é retirada, as ovelhas parecem expressar um alívio profundo e relaxamento. Este ciclo virtuoso não é apenas uma tradição: é um ato de amor e gratidão à Natureza e aos pastores que cuidam destas criaturas. A lã resultante desse cuidado é utilizada para criar produtos verdadeiramente extraordinários, mantendo viva uma parte importante da nossa herança cultural.
Quais sãos os produtos que fabricam e qual a utilização?
Os produtos da Burel Factory abrangem diversas áreas de impacto. Destaco o uso tridimensional do burel em instalações de arte, acústica e revestimentos, bem como a sua combinação com madeiras nobres na criação de mobiliário exclusivo. As mantas decorativas também são muito importantes. Resgatámos e reinventámos padrões antigos, tornando-os únicos e inimitáveis. Para os tecidos de alfaiataria, trabalhamos em estreita colaboração com designers nacionais e internacionais, e têm surgido peças muito interessantes. Também temos a nossa confeção de roupas, malas e acessórios, nas nossas lojas em Lisboa e Porto. Embora já tenhamos recebido muitos prémios, o nosso maior impacto é sentido na comunidade e no legado cultural que preservamos.
Disse que o burel dos dias de hoje é um produto de luxo…
O nosso burel atual é considerado um produto de luxo devido à sua autenticidade e valorização crescente. Passando por numerosos processos manuais que estavam a desaparecer, o burel não pode ser vendido a preços baixos como era no passado. O luxo está na lã única e na raça das ovelhas, tornando-o verdadeiramente distintivo e único. Proteger, valorizar e certificar estes elementos são os nossos próximos passos. Todos podem fazer um tecido feltrado, mas não podem fazer burel se não for com ovelhas específicas. O que diferencia este tecido é o local e a raça das ovelhas.
Qual é o vosso papel na preservação da cultura têxtil tradicional de Portugal?
O papel da Burel Factory na preservação da cultura têxtil tradicional em Portugal é fundamental. A nossa missão vai além de criar produtos de alta qualidade; envolve também a transmissão do conhecimento e das tradições que se acumularam ao longo dos anos. Valorizamos a autenticidade e a genuinidade. O nosso compromisso é assegurar que as gerações futuras tenham acesso a esta riqueza. Acreditamos que é responsabilidade do Estado apoiar e fomentar estas indústrias para que continuem a ser agentes formadores de jovens. Além da inovação no design, a nossa base é construída sobre a preservação do património, garantindo que a história das nossas gentes não seja perdida e se perpetue por muitos anos.