Daniel Roseberry assina a coleção haute couture na qualidade de diretor criativo da casa Schiaparelli, desde sempre conhecida pela sua ligação à arte e aos artistas, pela ousadia, cor e forma de abordar cada época segundo um olhar revolucionário e inventivo.
Alta-costura, arte, fragrâncias e elementos comuns transformados em criações elaboradas. As suas colaborações com artistas como Cocteau, Man Ray, Giacometti e Marcel Vertès, entre outros, tornaram-se lendárias. Elsa Schiaparelli foi a primeira mulher estilista a conseguir honras de capa (Time, 1931), criou o seu primeiro motivo trompe l’œil numa camisola tricotada à mão para si própria, convidou o artista Salvador Dalí para desenhar um estojo para pó compacto com a forma de um mostrador de telefone e fez da sua casa e atelier um hotel em Paris, de cinco andares, com uma boutique no rés do chão, projetado pelo famoso designer de interiores Jean-Michel Frank em colaboração com o escultor suíço Alberto Giacometti, tendo sido a primeira interpretação moderna de uma casa de alta-costura em que existe uma boutique e um atelier num só edifício.
Dar seguimento à história e à importância de um nome como o de Elsa Schiaparelli é, desde 2019, o desafio de Daniel Roseberry (1985, Texas), que abriu a última edição da Semana de Alta-Costura de Paris com um desfile onde a ligação entre os mundos da moda e da arte iluminou o palco. “Depois da última estação, que consistia em reduzir cada look a algo conciso e até cativante, o meu instinto com esta coleção foi construí-la de uma forma diferente, que se aventurasse, explorasse e ousasse. Uma coleção que parecesse mais orgânica, mais sensual, mais improvisada”, disse Roseberry. “Encontrei liberdade nas peças soltas — uma camisa branca, calças de corte perfeito, casacos enormes e até mesmo peças básicas de malha, como cardigãs e saias tubulares. Queria desenhar um guarda-roupa impossível”, lemos. “Impossível não por não ser usável, mas por ser tão extraordinário, uma interpretação surrealista do guarda-roupa essencial de uma mulher. Há uma sensação de liberdade, de desobediência; estas são peças que uma mulher pode conjugar como quiser; o sentimento de transgressão e espontaneidade que ela deve sentir quando o faz é o sentimento que eu também experimentei quando estava a criá-las.” A maior parte dos looks foram montados nos dias que antecederam este desfile, em oposição a fórmulas ‘da cabeça aos pés’, trabalhadas durante meses. “Esta abordagem foi uma revelação”.
A longa ligação de Schiaparelli à arte e aos artistas é o denominador comum. Mais do que qualquer outra maison, Schiaparelli manteve desde sempre um diálogo contínuo com a arte. Nesta coleção, cada peça foi, de alguma forma, inspirada por um artista, quer atual quer do tempo de Elsa, quer de meados do século, quer do nosso. “Pintámos à mão o corpo de uma mulher com um trabalho de pincel inspirado em Lucian Freud e depois transferimos essa imagem para um body de seda elástica, onde cada pincelada foi feita com paillettes cintilantes”. As peças de mosaico espelhado do escultor Jack Whitten deram origem a um casaco de malha e a uma saia de espelhos partidos; as contas azuis profundas em forma de seixo e pó que cobrem uma multiplicidade de superfícies são um aceno a Yves Klein, mas também às ilustrações infantis de Miró. Há ainda espaço para homenagens a Dalí, a Matisse (neste caso, às palmeiras do hotel Regina, vistas na peça de pelo comprido preto, como um fantástico casaco falso) e até a uma Vénus de mármore branco observada num casaco branco de inverno.
Fortemente inspirada pela agonia e pelo êxtase da criação, a coleção celebra, ainda, a mulher que ama a vida com peças que pedem para serem amadas para a vida.
Este diálogo estende-se também aos acessórios da estação. É o caso das bijuterias, inspiradas nas esculturas monumentais de Giacometti ou nas molduras de Claude Lalanne.
Para desenhar algumas destas peças, de pulseiras e pregadeiras, Roseberry utilizou as suas próprias plantas de casa: “Cortava uma folha, trazia-a para o estúdio e mandava-a fundir em metal, mas também há muita bijuteria em madeira”, salienta. Uma estreia para a maison.
Da mesma forma, a nova carteira Schiap também foi repensada, ora pintada à mão em pele crocodilo multicolorida, ora vestida de contas de madeira leve. Os sapatos foram reduzidos ao essencial, com a fita métrica característica da maison a subir pela barriga da perna, “um pormenor que levaremos para as futuras linhas de calçado”.
“Vivemos e criamos moda numa época em que a criatividade, as inovações da Internet e o folclore das celebridades nos chegam semanalmente, diariamente e, cada vez mais, a cada minuto. Algumas delas nem sequer são criadas por mãos ou mentes humanas. Quase todas são esquecidas amanhã. Por isso quis tanto que esta coleção fosse agressiva, inconfundivelmente humana e que estivesse enraizada em referências artísticas, intemporais. Vestir, decorar, mas, acima de tudo, criar é tão primitivo como qualquer outro instinto.”
Sobre Daniel Roseberry
Filho de um padre e de uma mãe artista, Daniel foi criado, com os seus irmãos, num ambiente profundamente religioso. Depois do liceu, viajou pelo mundo em missões de serviço cristão, do Havai a Israel. Já nos Estados Unidos, inscreveu-se no Fashion Institute of Technology de Nova Iorque, que abandonou ao fim de dois anos para começar a trabalhar na Thom Browne, casa de alfaiataria nova-iorquina, onde ascendeu a chefe de design. Em 2019, assumiu o cargo de diretor artístico da casa Schiaparelli, revisitando alguns dos códigos e iconografia mais influentes da empresa, em homenagem à sua fundadora, ao amor de Elsa Schiaparelli pelo Surrealismo, sem, contudo, deixar de contribuir com um novo vocabulário estético, visto no uso recorrente de joias e ferragens de ouro, na ganga reaproveitada ou nas partes do corpo vestidas de couro e metal.