Plena de histórias de amor e de ousadias, a sua vida dava um filme! Jane Birkin deu voz a uma das músicas mais sensuais e eróticas de sempre, mas a cantora e atriz é muito mais do que a intérprete de Je t’aime… moi non plus. Pioneira de um estilo que não seguia convenções, era fã dos cestos de vime, que usava na cidade, e deu o seu nome a uma das carteiras mais icónicas da casa Hermès.
O seu look permaneceu quase inalterado durante toda a vida, com o cabelo comprido e a sua inseparável franja, que lhe acentuava os olhos azuis. Jane Birkin era uma lenda viva até ao dia da sua morte, em julho de 2023. Hoje, é um mito da atualidade. Birkin é muito mais do que a cantora de Je t’aime… moi non plus e a personalidade que deu origem à carteira com o seu nome, feita pela casa Hermès. Jane, que representa a imagem de uma mulher sexy, sem preconceitos, livre e emancipada, tem uma história de vida com êxitos e sucessos, aplausos e polémicas, muitas aventuras, amores frustrados e traições ou superação de obstáculos, mas também foi marcada por desgostos e doenças.
O amor dos pais e a rebeldia
Jane Birkin nasceu em Londres em 1946. A mãe era a atriz Judy Campbell (uma estrela e uma mulher de grande beleza), e o pai, David Birkin, era tenente-comandante da marinha real britânica. O casal, da classe alta, educou os filhos com amor e no respeito às origens aristocráticas. Jane era descendente do rei Carlos II e toda a família respeitava a monarquia britânica. Em criança, Jane irá mesmo oferecer um ramo de flores a Isabel II, quando a rainha visita a fábrica de rendas do avô. Depois irá ser, novamente, apresentada à soberana durante a estreia do filme Meurtre au soleil, em 1982, baseado num romance de Agatha Christie e no centenário da Entente Cordiale, em 2004.
A influência artística da mãe e da parente Sophie Hunth, personalidade do teatro e da ópera, foi decisiva em Jane e no irmão, que se tornaria realizador. No entanto, a veia criativa não fazia dela uma extravagante, pelo contrário: “Eu era uma miúda inglesa tímida”, como se descreveu anos mais tarde. A família vivia no elegante bairro de Chelsea, numa existência feliz, que será interrompida quando é enviada para um colégio interno na ilha de Wight. Foi um corte radical com a vida calma que tinha e passa a ser chamada, não pelo nome, mas por 99, o número do seu quarto. O ambiente é-lhe hostil, é gozada pela sua aparência half-cast (maria-rapaz) e as más notas sucedem-se. Os pais são sensíveis à sua dor, mas em vez de a retirarem do internato, encorajam-na a escrever as suas penas, um hábito que nunca mais abandonou. Esta experiência da escrita irá dar origem, em 2018, a Munkey Diaries, um livro no qual conta a sua vida entre 1957 e 1982 e, um ano depois, decide fazer mais revelações em Post Scriptum, que abrange os anos de 1982 a 2013.
A sua carreira começa, ainda menor, como manequim e, aos 17 anos, a adolescente conhece o compositor John Barry, autor das bandas sonorosas de James Bond, que a convida a fazer parte da comédia musical Passion Flower Hotel. “Eu não era a melhor do casting, mas ele viu qualquer coisa em mim.” Será com John Barry, treze anos mais velho, que irá viver o seu primeiro amor. E casa-se. Corria o ano de 1965. Jane, num ato de rebeldia, não ouviu os pedidos dos pais e, com uma vontade indomável, não ligou aos boatos de Barry ser um don juan. “O meu pai não queria que me casasse sendo menor, mas eu não o escutei.” Ela não desistiu do seu sonho e funda uma família. Pelo meio faz o seu filme, Blow Up, em 1966, onde aparece nua. Imagine-se o efeito causado na altura! Um ano depois dá à luz a primeira filha, batizada como Kate Barry, mas, infeliz ao amor, devido às infidelidades do marido, decide divorciar-se um ano depois. Volta para casa dos pais e começa a procurar mais trabalho no cinema. É nesse ano que filma Wonderwall.
Música sexy proibida
Jane queria mais e tenta a sua sorte em França. Em 1968, conhece Serge Gainsbourg, anterior companheiro da mítica Brigitte Bardot, com quem irá alcançar fama e projeção internacional. É com este cantor e ator que irá fazer uma parceria musical, mas também romântica que irá dar muito que falar nos anos 60 e 70 do século XX. O filme Slogan, de 1968, o primeiro em que trabalham juntos, marca o início da vida de ambos. Conta-se que, no início da rodagem da película, os dois não se deram muito bem e que ele implicava com o sotaque inglês dela, mas esta “crispação” foi apenas no começo. O realizador de Slogan, Pierre Grimblat, acredita no potencial dos dois atores, mas percebe o mal-estar entre ambos e é então que tem a ideia de os convidar para sair uma sexta-feira à noite no Maxim’s, um espaço mítico da noite parisiense onde o ambiente entre os dois ficou mais ameno. Depois Serge convida Jane para ir dançar. “Só passavam slows. Ele pisava-me os pés e eu adorei, assim como gostei da sua timidez e da sua falta de jeito”, contaria Jane, a propósito da sua primeira saída com Gainsbourg. O coup de foudre aconteceu ali, porque, na segunda-feira, os dois chegaram às filmagens de mãos dadas. “Cada um tinha saído de uma relação forte. Cada um tinha as suas feridas. Ele com Brigitte [Bardot], eu com John Barry. Juntos, nós cuidámos um do outro, criámos um grande afeto e de uma maneira duradora. Para a vida”, afirmou Birkin.
Os dois iriam tornar-se uma dupla mítica e colossal, como escreve a imprensa na altura, rendida não só ao talento dos atores, mas também ao casal que formavam. Segue-se o primeiro álbum da cantora e, em 1969, Jane e Serge protagonizam o polémico tema Je t’aime… moi non plus, um dueto que irá dar muito que falar. A música, quase sussurrada, com um tom sexual explícito e com pequenos gemidos eróticos, ora doces ora agudos, foi escrita por Serge para Bardot, mas acabaria por ser Birkin a torná-la famosa. Na altura, verdadeiro hino ao sexo sem amor, ao desejo e à liberdade, Je t’aime… moi non plus foi um escândalo que chegou a ser banida por vários países, incluindo o Vaticano e Portugal, por ser considerada um atentado aos bons costumes de um país mergulhado no regime de Salazar.
Serge Gainsbourg foi um verdadeiro marco para Jane. Ele era uma das figuras mais importantes da chanson française, famoso pelos seus trabalhos, que tinham sempre uma pitada de escândalo e provocação. Serge escreveu para grandes nomes da música como Juliette Greco, Françoise Hardy, Brigitte Bardot (o célebre Bonnie & Clyde) ou Vanessa Paradis.
Os pais de Jane gostaram de Serge. “Depois de me verem tão triste com John Barry, eles viam-me finalmente feliz.” Formaram um dos casais mais icónicos do mundo artístico, até que se separam, em 1980, ao fim de doze anos de casamento. “Jane saiu de casa por falha minha. Eu cometia muitos abusos”, admite Gainsbourg.
Mesmo separados, Jane e Serge continuam a trabalhar e ficam unidos por afeto que vai além da filha de ambos, a atriz Charlotte Gainsbourg, que será a autora, anos mais tarde, do documentário Jane por Charlotte, dedicado à mãe.
Serge continua a escrever para a ex-mulher até à sua morte, em 1991, e um dos álbuns de maior sucesso de Jane Baby alone in Babylone, foi disco de ouro. Arabesco, de 2002, também chegou a ser disco de ouro.
Foi depois dos 40 anos que Jane se estreou nos palcos e enfrentou o público a vibrar com os seus êxitos. Os espetáculos no Bataclan, no Casino de Paris e no Olympia foram um sucesso.
O cinema e a música nunca se afastam do percurso de Jane, que acaba por se apaixonar, de novo, pelo cineasta Jacques Doillon, durante as filmagens de La fille prodigue, com quem acabaria por se casar pela terceira vez e ter uma filha, a modelo e atriz Lou Doillon, cujo padrinho é Serge, o ex de Birkin.
Com Doillon, Jane irá fazer uma vida completamente oposta à que tinha com o segundo marido. “No nosso primeiro ano de casados, eu perguntei a Jacques aonde é que nós íamos e ele disse-me. ‘A lado nenhum’. Com Serge, nós saíamos para o Maxim’s até às quatro da manhã. Com Jacques, tinha a impressão de ter entrado num convento. Mas ao mesmo tempo, andávamos de bicicleta, fazíamos piqueniques… tantas coisas que eu até então ignorava.’” Mas o casal acabou por se separar. O seu último amor foi o escritor Olivier Rolin, mas a relação também não resultou.
O insucesso na sua vida privada não a faz parar! A sua longa carreira também inclui papéis cómicos como La moutarde me monte au nez ou La course à l’échalote. O seu último filme foi Boxes, de 2007, e, um ano depois, grava Enfants d’ Hier, o seu último disco, mas ainda iria filmar La femme et le TGV, uma curta-metragem, em 2016.
Nos diversos países por onde atuou, Jane Birkin também esteve em Portugal. Em 2017, deu o espetáculo Gainsbourg Sinfónico, nos jardins da Fundação Gulbenkian, em Lisboa.
A cesta de palha e a carteira Birkin
Descomplexada, a cantora representou uma lufada de ar fresco numa sociedade ainda fechada, mas cujos ventos de mudança já se faziam anunciar. Com 1,73 m de altura, Jane tornou-se sexy, mas não cultivava a imagem de sex bomb. A voz inconfundível dava-lhe carisma. O seu inegável estilo andrógino, a franja e os dentes separados, também. Com jeans e T-shirts unissexo, Jane era uma cosmopolita que não se conformava com o mundo de então. Luta para acabar com a pena de morte e torna-se defensora dos direitos das mulheres e uma ativista dos refugiados e de outras questões humanitárias e ecológicas.
A carteira Birkin, um dos modelos mais famosos da casa de luxo Hermès, tem o seu nome graças a um facto inesperado. Na década de 1980, numa viagem de avião de Paris para Londres, Jane deixa cair a sua carteira e os seus objetos pessoais espalham-se no chão, ficando tudo à vista. Ao seu lado no banco do avião estava Jean-Louis Dumas, o então diretor da Hermès, que a ajuda a apanhar os seus pertences e ela comenta, sem saber com quem estava a falar, que gostaria de ter uma carteira “grande, para guardar muitas coisas”. A Hermès pediu autorização à cantora para usar o seu nome emprestado e, depois de aceitar, o contrato estabelecia um royalty anual, o que a fez ganhar uma fortuna ao longo dos anos. Foi assim que nasceu a Birkin Bag, um dos modelos mais desejados e exclusivos do mundo. Embora muitos não saibam esta história nem a origem do nome deste objeto de desejo, Jane tornou-se um ícone de moda e um símbolo da excelência e do savoir-faire francês. Ela própria contava divertida uma história que confundia o seu nome com o modelo da Hermès: “Quando vou à América cantar, perguntam-me: ‘Birkin? Como a carteira?’ e eu respondo: ‘Sim, claro e agora a carteira vai cantar’”.
Mas a influência estética de Jane não se fica pelo mercado de luxo. Numa outra escala, Jane também ajudou a tornar famoso o cesto de vime, que usava na cidade, como acessório, quando este era usado apenas no campo e pelas classes baixas como utensílio de armazenamento. Certo dia, o seu terceiro marido “passou-lhe o carro por cima de propósito”, como contou, sem revelar se foi por não gostar do cesto ou se foi num momento de fúria entre o casal. Sem querer ou desejar, Jane foi uma musa de estilo ou, para se usar uma expressão da atualidade, uma influencer, num tempo ainda bastante longe das redes sociais. O espírito boémio aliado à sua criatividade andaram sempre de mãos dadas.
Desgostos e dramas pessoais
O reconhecimento veio de todos os lados, e o sucesso, embora não o procurasse, também não o renegava. Foi com agrado que recebeu do então príncipe Carlos, hoje rei de Inglaterra, em 2001, a medalha da Ordem do Império Britânico, porque, mesmo vivendo em França, Jane Birkin nunca esqueceu que as suas origens estavam na ilha da Grã-Bretanha.
A vida também foi de superação no que à saúde diz respeito e, nos últimos tempos, estava muito fragilizada. Em 2012, sofreu uma pericardite aguda, um susto que não será nada comparado com a morte da filha mais velha, em 2013. Kate Barry, fotógrafa, que tinha vivido no meio de fortes adições, cai de um quarto andar e não resiste aos ferimentos. “Quando a minha filha morreu não sabia o que fazer (…). Vivi uma vida paralela.” Em 2017, uma leucemia, como a própria revelou, veio dar-lhe mais sofrimento, mas lutou e sempre que podia gostava de ir ao teatro, que tinha, para si, agora mais do que nunca, uma função terapêutica, “porque as coisas belas podem ajudar a viver”, confidenciou.
Em 2021, sofreu um ataque vascular cerebral e, desde então, vivia praticamente retirada, mas estava consciente de quem era e do que representava. Poucos meses antes de deixar o mundo dos vivos, obrigada a cancelar um espetáculo, escreveu aos fãs: “Gosto imenso de estar convosco. Vocês fazem muita falta”.
Morreu na sua casa de Paris aos 76 anos, mas Jane Birkin, a inglesa favorita dos franceses, não morreu de verdade, porque os que gostam das suas músicas e os que a acham uma atriz de culto não a esquecerão. Não é dos grandes que reza a História?
Por: Alberto Miranda